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É muito vulgar o uso desta expressão[1] ou de outras semelhantes, sobretudo na linguagem coloquial. Neste caso, o pronome eu está a mais e é um disparate. Diga-se apenas “custava-me a acreditar que as coisas tivessem corrido assim” ou, de forma pleonástica, “a mim custava-me a acreditar que as coisas tivessem corrido assim”. Na frase proferida por Lopo Xavier, o pronome eu figura erradamente como sujeito de custava-me, cujo sujeito real é a oração integrante “que as coisas tivessem corrido assim”.


[1] Lopo Xavier in “Quadratura do Círculo”, 18.06.09

Atempadamente

O emprego deste advérbio, utilizado como pretenso sinónimo das expressões “dentro do prazo”, “em tempo oportuno” e “a tempo”, entre outras, foi e é ainda um dos maiores dislates praticados com a língua portuguesa .
Começou a ser proferido com certa regularidade nos anos 80 e 90, nomeadamente por políticos. Dos políticos à classe jornalística e aos gestores foi um pequeno passo, mas confinou-se praticamente a estes actores sociais. Chegou a ser politicamente correcto intercalar o termo em discursos, em publicações e até em relatórios de todo o cariz.
Contudo, a maioria dos portugueses não aceitou tal imposição, abolindo aquela palavra do seu vocabulário quotidiano, pois não significa o que os seus autores pretendiam. Na verdade, “atempar” quer dizer, em português antigo, marcar prazo, determinar ou delimitar o tempo em que certa acção deverá ocorrer, aprazar, etc..
Compulsando o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, encontra-se o verbo “atempar” com a seguinte descrição: “fixar tempo ou prazo (para alguma coisa), ajustar, aprazar, assentar, atermar, combinar, concertar, conchavar, concordar, definir, designar, determinar, emprazar, estabelecer, firmar, fixar, marcar”. Daí o facto da expressão "O governo assinou o decreto atempadamente" não significar "O governo assinou o decreto dentro do prazo (legal)" , mas sim, "O governo assinou o decreto, fixando um prazo".
Tenhamos bom senso; não utilizemos os termos da nossa língua a nosso bel-prazer, mas empreguemo-los morfológica, sintáctica e semanticamente de forma correcta.
Por mera coincidência (?!), na altura em que o advérbio começou a circular nos meios de informação, estava em emissão uma novela brasileira, cujo personagem principal proferia com muita convicção: - Vamos pr’afrentemente!

Morto/Matado/Morrido

“- Mas porque é que tu queres tanto que eu o tenha morto?”

“- Ele não disse se tinha morto algum?”

(TAVARES, Miguel Sousa, Rio das Flores , Oficina da Livro, 5.ª ed., pgs. 38 e 39, Lisboa, 2008)

Foram estas perguntas, insertas nas duas últimas páginas do 1.º capítulo do Rio das Flores, que me forçaram também a vir a terreiro, à semelhança do que fizeram doutas e ilustres personalidades relativamente à utilização indiscriminada dos particípios, regulares e irregulares, dos verbos morrer e matar. De facto, estes dois verbos são dos chamados ABUNDANTES por possuírem duas formas equivalentes nos respectivos particípios:
a) Morrer tem o particípio regular morrido e o particípio irregular morto.
Exs.: 1. Soube apenas ontem que o Francisco Lopes tinha morrido. 2. Quando os bombeiros chegaram, o homem já estava morto.
b) Matar usa matado como particípio regular e igualmente morto como irregular.
Exs.: 1. Disseram-me que o Manuel já tinha matado o porco. 2. O soldado foi morto por uma bala perdida.
A propósito, Celso Cunha e Lindley Cintra afirmam que “(…) De regra, a forma regular emprega-se na constituição dos tempos compostos da VOZ ACTIVA, isto é, acompanhada dos auxiliares ter ou haver; a irregular usa-se, de preferência, na formação dos tempos da VOZ PASSIVA, ou seja, acompanhada do auxiliar ser”[1].
Por sua vez, Edite Estrela, Maria Almira Soares e Maria José Leitão, reforçam esta doutrina, referindo: “ 1. Morto é particípio passado de morrer, mas estende-se a matar na voz passiva”. [2]
Segundo Rodrigues Lapa, “com os particípios irregulares exprimimos sobretudo o estado; com os regulares traduzimos a acção. Os primeiros têm um carácter parado, estático; os segundos são vivos e dinâmicos”.
Assim, se fossem tidas em linha de conta as regras atrás referidas, os exemplos citados apresentar-se-iam numa perspectiva semântica mais clara e mais realista: “- Mas porque é que tu queres tanto que eu o tenha matado?”; “- Ele não disse se tinha matado algum?”. Com efeito, o particípio regular está mais próximo da acção de matar e o irregular mais próximo do resultado ou efeito da acção, isto é,do estado em que ficaram os hipotéticos atingidos pelos tiros.
Alem disso, por vezes queremos minimizar a crueza de certas expressões e substituímo-las eufemisticamente por outras que se nos afiguram afins, mas que alteram a realidade que queremos expressar.
Não sei nem terá agora interesse saber qual foi a causa desta arbitrariedade do autor; se foi propositada para, por exemplo, reproduzir certo linguajar juvenil ou se terá sido fruto duma distracção dos revisores da editora.
O que importa, isso sim, é emendarmos a mão e procurarmos conhecer e seguir as regras que estão subjacentes ao bom uso da nossa língua.
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[1]. CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Edições João Sá da Costa, 6.ª Ed., pg.. 441, Lisboa, 1989
[2] .ESTRELA, Edite, SOARES, Maria Almira, LEITÂO, Maria José, Saber Escrever Saber Falar, Dom Quixote, 6.ª Ed., pg. 82, Lisboa, 2006

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