Desde que o conheço a prestar declarações públicas, Paulo Portas parece estar condenado, talvez por imposição pessoal, a “corrigir” todos os portugueses, convidando-os a dizerem, como ele sempre fez e faz (SIC, 07.07.09), Caixa Geral dos Depósitos, em lugar de Caixa Geral de Depósitos.
Ambas as expressões são correctas gramaticalmente, mas não significam o mesmo. Basta acrescentar o artigo os à preposição de para que se altere o sentido. Assim, quando se diz “Caixa Geral de Depósitos”, profere-se o nome de uma instituição bancária onde se podem fazer (alguns, vários, muitos, poucos…) depósitos. Ao contrário, “Caixa Geral dos Depósitos” referir-se-ia à “totalidade dos depósitos que se tivessem de fazer”, conferindo-lhe o monopólio de todos os depósitos, o que não é verdade nem se pretende.
Diga-se, portanto, Caixa Geral de Depósitos, pois é a designação correcta daquele Banco.

Ir ao encontro de/ ir de encontro a

Têm sido repetidas por vários representantes partidários frases como esta: “O Senhor Presidente da República, ao marcar separadamente as datas das próximas eleições, foi de encontro àquilo que o nosso partido defendeu”.

A locução de encontro a significa exactamente o contrário do que os políticos que a expressaram queriam que dissesse. Por ter sido objecto de comunicação pública recente, torna-se oportuno referirmo-nos já a ela. A sugestão, de resto, foi novamente feita pelo Miguel Vaz, o qual desta vez juntou uma análise ao assunto. Passo a transcrevê-la:

“Apesar de serem frequentemente confundidas, as locuções prepositivas ao encontro de e de encontro a têm significados diferentes e chegam a ser antónimas. Assim, a locução ao encontro de pode significar “na direcção de”, “à procura de” ou “em consonância com” (ex. queria ir ao encontro das necessidades dos clientes). Pelo contrário, a locução de encontro a pode significar “em sentido oposto”, podendo ser sinónimo da preposição contra (ex. não podia ir de encontro às necessidades dos clientes).Estas duas locuções podem formar locuções verbais em conjugação com vários verbos (ex. correr/ir/vir ao encontro de; ir/surgir/vir de encontro a), com significados semelhantes, como se pode ver nos exemplos acima..
Helena Figueira 26-Jan-2006”

De facto, assim é. E não digo mais sobre o assunto, dada a clareza e a pertinência desta análise.

Vende-se andares/vendem-se andares

Por sugestão do meu amigo, Eng.º Miguel Vaz, vamos hoje reflectir um pouco sobre a confusão que ainda reina acerca da função da partícula se em frases como “vende-se andares” e “vendem-se andares”. À primeira vista parecem ser duas expressões semelhantes, apenas com a diferença de os predicados estarem escritos nas 3.ªs pessoas do singular e do plural, respectivamente. De facto encontramo-las a cada passo, indiscriminadamente escritas duma forma ou de outra e com o objectivo de quererem dizer o mesmo. Contudo, apenas uma forma está correcta: “vendem-se andares”
Vejamos o que, a propósito, escreveu Sá Nogueira[1]: “Se – Esta partícula desempenha em português várias funções e, por isso, é classificada de vários modos. Vejamos: a) É conjunção condicional na frase: «sairei se não chover». b) É pronome reflexo na frase: «Pedro feriu-se num dedo». c) É conjunção integrante na frase: «Dize-me se pensas cá vir amanhã». d) É partícula apassivante, segundo a classificação de uns, e pronome indefinido, segundo a classificação de outros. Aqui não nos interessa o problema da classificação desta partícula. O que nos interessa é a sua sintaxe. Vejamos: Diga-se: «vendem-se selos» e não «vende-se selos»; «compram-se móveis antigos» e não «compra-se móveis antigos»; «encadernam-se livros» e não «encaderna-se livros». Em tais casos, o verbo vai sempre para o plural, pois que se consideram estas frases equivalentes às seguintes orações passivas: «selos são vendidos», «móveis são comprados», «livros são encadernados» (…)”.




[1] NOGUEIRA, Rodrigo de Sá, Dicionário de erros e problemas de linguagem, Livraria Clássica Editora, 2.ª ed., Lisboa, 1974, pg. 343

É muito vulgar o uso desta expressão[1] ou de outras semelhantes, sobretudo na linguagem coloquial. Neste caso, o pronome eu está a mais e é um disparate. Diga-se apenas “custava-me a acreditar que as coisas tivessem corrido assim” ou, de forma pleonástica, “a mim custava-me a acreditar que as coisas tivessem corrido assim”. Na frase proferida por Lopo Xavier, o pronome eu figura erradamente como sujeito de custava-me, cujo sujeito real é a oração integrante “que as coisas tivessem corrido assim”.


[1] Lopo Xavier in “Quadratura do Círculo”, 18.06.09

Atempadamente

O emprego deste advérbio, utilizado como pretenso sinónimo das expressões “dentro do prazo”, “em tempo oportuno” e “a tempo”, entre outras, foi e é ainda um dos maiores dislates praticados com a língua portuguesa .
Começou a ser proferido com certa regularidade nos anos 80 e 90, nomeadamente por políticos. Dos políticos à classe jornalística e aos gestores foi um pequeno passo, mas confinou-se praticamente a estes actores sociais. Chegou a ser politicamente correcto intercalar o termo em discursos, em publicações e até em relatórios de todo o cariz.
Contudo, a maioria dos portugueses não aceitou tal imposição, abolindo aquela palavra do seu vocabulário quotidiano, pois não significa o que os seus autores pretendiam. Na verdade, “atempar” quer dizer, em português antigo, marcar prazo, determinar ou delimitar o tempo em que certa acção deverá ocorrer, aprazar, etc..
Compulsando o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, encontra-se o verbo “atempar” com a seguinte descrição: “fixar tempo ou prazo (para alguma coisa), ajustar, aprazar, assentar, atermar, combinar, concertar, conchavar, concordar, definir, designar, determinar, emprazar, estabelecer, firmar, fixar, marcar”. Daí o facto da expressão "O governo assinou o decreto atempadamente" não significar "O governo assinou o decreto dentro do prazo (legal)" , mas sim, "O governo assinou o decreto, fixando um prazo".
Tenhamos bom senso; não utilizemos os termos da nossa língua a nosso bel-prazer, mas empreguemo-los morfológica, sintáctica e semanticamente de forma correcta.
Por mera coincidência (?!), na altura em que o advérbio começou a circular nos meios de informação, estava em emissão uma novela brasileira, cujo personagem principal proferia com muita convicção: - Vamos pr’afrentemente!

Morto/Matado/Morrido

“- Mas porque é que tu queres tanto que eu o tenha morto?”

“- Ele não disse se tinha morto algum?”

(TAVARES, Miguel Sousa, Rio das Flores , Oficina da Livro, 5.ª ed., pgs. 38 e 39, Lisboa, 2008)

Foram estas perguntas, insertas nas duas últimas páginas do 1.º capítulo do Rio das Flores, que me forçaram também a vir a terreiro, à semelhança do que fizeram doutas e ilustres personalidades relativamente à utilização indiscriminada dos particípios, regulares e irregulares, dos verbos morrer e matar. De facto, estes dois verbos são dos chamados ABUNDANTES por possuírem duas formas equivalentes nos respectivos particípios:
a) Morrer tem o particípio regular morrido e o particípio irregular morto.
Exs.: 1. Soube apenas ontem que o Francisco Lopes tinha morrido. 2. Quando os bombeiros chegaram, o homem já estava morto.
b) Matar usa matado como particípio regular e igualmente morto como irregular.
Exs.: 1. Disseram-me que o Manuel já tinha matado o porco. 2. O soldado foi morto por uma bala perdida.
A propósito, Celso Cunha e Lindley Cintra afirmam que “(…) De regra, a forma regular emprega-se na constituição dos tempos compostos da VOZ ACTIVA, isto é, acompanhada dos auxiliares ter ou haver; a irregular usa-se, de preferência, na formação dos tempos da VOZ PASSIVA, ou seja, acompanhada do auxiliar ser”[1].
Por sua vez, Edite Estrela, Maria Almira Soares e Maria José Leitão, reforçam esta doutrina, referindo: “ 1. Morto é particípio passado de morrer, mas estende-se a matar na voz passiva”. [2]
Segundo Rodrigues Lapa, “com os particípios irregulares exprimimos sobretudo o estado; com os regulares traduzimos a acção. Os primeiros têm um carácter parado, estático; os segundos são vivos e dinâmicos”.
Assim, se fossem tidas em linha de conta as regras atrás referidas, os exemplos citados apresentar-se-iam numa perspectiva semântica mais clara e mais realista: “- Mas porque é que tu queres tanto que eu o tenha matado?”; “- Ele não disse se tinha matado algum?”. Com efeito, o particípio regular está mais próximo da acção de matar e o irregular mais próximo do resultado ou efeito da acção, isto é,do estado em que ficaram os hipotéticos atingidos pelos tiros.
Alem disso, por vezes queremos minimizar a crueza de certas expressões e substituímo-las eufemisticamente por outras que se nos afiguram afins, mas que alteram a realidade que queremos expressar.
Não sei nem terá agora interesse saber qual foi a causa desta arbitrariedade do autor; se foi propositada para, por exemplo, reproduzir certo linguajar juvenil ou se terá sido fruto duma distracção dos revisores da editora.
O que importa, isso sim, é emendarmos a mão e procurarmos conhecer e seguir as regras que estão subjacentes ao bom uso da nossa língua.
__________
[1]. CUNHA, Celso e CINTRA, Lindley, Nova Gramática do Português Contemporâneo, Edições João Sá da Costa, 6.ª Ed., pg.. 441, Lisboa, 1989
[2] .ESTRELA, Edite, SOARES, Maria Almira, LEITÂO, Maria José, Saber Escrever Saber Falar, Dom Quixote, 6.ª Ed., pg. 82, Lisboa, 2006

Scripta et Verba - justificação

Acérrimo defensor do bom uso e do correcto emprego da nossa língua, quero juntar-me a todos os que, usando a sensatez e a sabedoria como armas, vêm lutando pela dignificação do português escrito e falado. Porque não me sinto um Velho do Restelo, uma espécie de puritano contumaz e maniqueísta, nem me vejo tão pouco na pele dum progressista indómito e irreflectido, não posso, contudo, pactuar com o "atamancado do jornalês"[1], com os postulantes duma forma de servilismo serôdio, com os irresponsáveis tagarelas da língua.
Resolvi, por isso, partilhar convosco as minhas preocupações, de uma forma aberta e dialogante, esperando que esta troca de ideias possa contribuir para o nosso enriquecimento pessoal e colectivo e para uma mais correcta utilização do nosso idioma.
Procurei, por economia de meios e de tempo, utilizar as ferramentas do weblogue, abreviada e comummente chamado blogue, porque é já um meio de comunicação deveras importante e usual e porquanto pode funcionar em tempo real. Espero, porém, que ainda venhamos a tempo de ajudar a travar a força da onda de corrosão da língua que vai grassando sob os auspícios de tantos e tantos passa-culpas.
Como facilmente se deduzirá, o nome deste espaço de partilha – Scripta et Verba [2]– não surgiu do nada; antes é o resultado de muita reflexão em comum e de muita vivência da leitura e da escrita. A reflexão em comum assenta na palavra (verbum) transmitida oralmente e a leitura e a escrita reportam-se à palavra fixada (scriptum), seja no livro, no jornal, no caderno, na carta, seja na pedra e noutros materiais.
Durante muitos anos a oralidade, a par de outras formas de comunicação, como a pintura e a reprodução de determinados símbolos gráficos, foi o principal veículo da interlocução humana e um dos únicos guardiães e divulgadores da cultura humana. Mas como diz o aforismo popular, as palavras leva-as o vento. Hoje já não será tanto assim, pois há milhares de formas de registo da expressão oral, que vão desde a escrita à gravação electrónica em todas as suas formas. Enfim, a oralidade e a escrita andarão de mãos dadas enquanto durar a existência humana.


[1] Mário Pinto in 'Como Evitar o Atamancado do Jornalês'
[2] Expressão latina que significa A Escrita e a Palavra (tradução livre)